segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Complexa Arte do Cotidiano


“My favorite things”, na versão do mestre do saxofone John Coltrane, é a mais bela canção de Jazz que já ouvi. E o mais interessante é ter ouvido num filme sobre um homem contador de histórias do cotidiano que, mais tarde, se tornaria uma grande influência minha e dos quadrinhos. O nome desse personagem real é Harvey Pekar, e o nome de tão admirável filme é “American Splendor” (2003). 

Basicamente, o filme trata a trajetória de vida de um simples funcionário público de Cleveland (US) na década de 1970, e que, após publicar suas histórias em quadrinhos, tornou-se famoso dentro da comics scene, frequentando programas de televisão populares como o Late Show.

A linguagem cinematográfica usada pelos diretores R.Pulcini e S.Springer Berman foi um elemento que chamou atenção. Intercalam-se dois espaços, o do ator e o da sua fonte de inspiração. Lado a lado, o enredo desenvolve-se a partir das impagáveis cenas do protagonista interpretado pelo ator Paul Giamatti e de depoimentos do próprio Harvey Pekar em sessões de gravação regadas a Jazz. Aliás, umas das paixões do artista (faleceu em 2010).

Do forte apreço pelo Jazz nasceu uma parceira muito enriquecedora, do ponto de vista artístico, entre Harvey Pekar e Robert Crumb, o mais cultuado desenhista de revista em quadrinhos da década de 1960 nos Estados Unidos. Crumb não quis definir seu estilo, mas críticos afirmam tratar-se do mestre dos undergrounds comics, além de ícone da contracultura norte-americana. 

O filme trazia muitas novidades para mim. Claro, eu já tinha ouvido falar sobre o Jazz, já tinha visto um filme sobre a trajetória pessoal e artística de Crumb, mas só naquele momento as coisas tinham ficado mais claras e interessantes. Na locadora eu escolhi por acaso o filme, ninguém o indicou e nunca tinha, sequer, ouvido falar sobre o assunto. A experiência foi realmente arrepiante, e é nessas horas que me entrego “às artes”. 

Não sei exatamente quando essa paixão nasceu, mas minhas experiências têm feito com que eu busque as raízes que conectam minha subjetividade a essas fontes de inspiração. O que eu entendo é que basta abrir todos os espaços interiores para absorver uma gama de emoções propiciadas pelas Artes.

Mas, voltando ao filme, depoimentos de Pekar narram que a amizade entre os artistas nasceu de um encontro num desses brechós de fundo de garagem que ofereciam discos de Jazz a preços bem acessíveis. Havia entre eles algo muito comum e inspirador, inicialmente traduzido em longas audições de Jazz. 

Mais adiante, a dupla seria responsável pelo conteúdo de “American Splendor”, título da revista em quadrinhos escrita por Pekar e desenhada por Crumb. Os textos traduziam toda a amargura, alegria, angústia, momentos de solidão e de amor, de um homem portador de uma carga psicológica intensa e sensível, que apostou transformar em arte sua própria história. Pekar escrevia sobre sua rotina diária, a partir de uma visão engraçada, emocionante e cheia de ironias deliciosas.

Além das diferentes percepções da história de vida de Pekar, o Jazz (fonte de inspiração para a trilha sonora), também passou a sua mensagem, pois meus ouvidos voltaram-se para aquele som enigmático e poderoso, que transformava cada momento do filme em uma experiência cênico-musical incrível. Meu apreço pelo Jazz desabrochou-se enquanto eu me aventurava pelo universo de Pekar. 

Chama-me muito a atenção a forma como a arte pode envolver um indivíduo a partir de formas inusitadas. No meu caso, por exemplo, uma simples ida à locadora, seguida de uma escolha aleatória de um filme, causou, em mim, um efeito maravilhoso que, mais adiante, desencadearia interesses tanto pela obra de Pekar como pelo Jazz. 

A partir da fusão cinema e música levo-me a pensar como são especiais as ramificações da arte na medida em que possuem uma capacidade inacreditável de se misturarem. No caso de “American Splendor” se traduz, de forma muito rica, a aliança cinematográfica e musical. Nesse momento, para mim, a arte dispensa qualquer tipo de classificação. Se ela toca na alma e trás inspiração, ela cumpriu a sua função. 

Minhas primeiras sessões de Jazz foram na graduação entre leituras, trabalhos e TCC; isto ajudou muito a desenvolver minha concentração, pois deixava-me inserida à atividade que eu estava fazendo, libertando-me de qualquer pensamento alheio. O poder que a arte pode exercer sobre o ser humano é realmente surpreendente.







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